Sem dúvidas, um dos pontos fortes de 2019, e que passará para a história da humanidade, é a primeira fotografia de um buraco negro. Esse evento é de extrema relevância, não só a nível científico, mas também no aspecto tecnológico.
Muitas coisas já foram ditas — algumas até erradas — sobre esse evento. Nosso propósito, hoje, é aprofundar nos detalhes e na tecnologia por trás da foto mais importante do ano. Acompanhe!
Um pouco da história que fez história
Depois de vários dias de expectativa e ansiedade, o mundo finalmente conseguiu contemplar a primeira foto de um buraco negro. Isso foi possível graças à tecnologia desenvolvida por Katie Bouman, para o projeto Event Horizon Telescope. Mas, como que a contribuição de Katie fez a diferença?
Antes de responder a essa pergunta, é necessário fazer alguns pequenos esclarecimentos e contar um pouco da história desse colossal projeto. O primeiro deles é que a fotografia do buraco negro não é uma fotografia no sentido convencional, já que não se trata de uma imagem captada e exposta diretamente na luz visível.
A luz é uma onda eletromagnética que conseguimos enxergar, por conta do seu comprimento, com um intervalo que o olho humano consegue perceber (entre 750 nm e 400 nm). Pois bem, a imagem do buraco negro não faz parte da faixa visível, já que está localizada entre as micro-ondas e o infravermelho (aproximadamente 1,3 mm de comprimento de onda) - ou seja, possui oscilações mais longas do que aquelas da faixa visível. Por isso, foi necessário capturar a fotografia com radiotelescópios ao invés de câmeras.
Além disso, vale a pena destacar que o buraco negro da Galáxia M87, localizado a 55 milhões de anos-luz da Terra, é um objeto muito pequeno (desde nosso ponto de vista, é claro). Possui 40 microssegundos de arco, isto é, um ângulo de 40 milionésimos de um 3.600º de um grau. Imagine observar um piolho na lua, e entenderá o desafio.
O problema para conseguir captar o buraco era a resolução angular: a capacidade de distinguir dois objetos cujas imagens estejam muito próximas. Uma imagem que vemos por meio de uma lente apresenta uma difração, ou seja, uma flexão das ondas, pelo qual a imagem pode ser indistinguível.
Para resolver esse obstáculo, seria necessário um receptor de um tamanho completamente impossível atualmente - digamos, do tamanho do nosso planeta. Por isso, foram utilizados oito telescópios — localizados na Antártida, Arizona, Havaí, México, Chile e Espanha — que coletaram dados simultaneamente, seguindo relógios atômicos para garantir a precisão ao compilá-los.
Mas era necessário um sistema que corrigisse as distorções causadas pelas condições atmosféricas e as diferenças na situação de cada telescópio (localizados em biomas tão
diferentes quanto desertos, trópicos, montanhas ou locais gelados), além de preencher os buracos na informação. Para isso, era fundamental utilizar a Interferometria de Longa Linha de Base (VLBI por sua sigla em inglês) - e é aqui onde Katie aparece na história.
Ela desenhou a maior parte do algoritmo que permitiu converter os dados numa imagem que fizesse sentido. O nome da solução é CHIRP, acrônimo de Continuous High-resolution Image Reconstruction using Patch priors.
Alguns detalhes curiosos
Cada telescópio do projeto Event Horizon Telescope produziu aproximadamente 350 terabytes de dados por dia, que foram armazenados em discos rígidos cheios de hélio de alto desempenho.
A quantidade de dados era tanta que os cientistas desenvolveram algoritmos para filtrar e conter esse número praticamente infinito de informação. Para isso, um dos parâmetros do algoritmo foi separar a informação fisicamente plausível daquela que não era.
A imagem do buraco negro está embaçada por vários motivos. Um deles tem a ver com essa reconstrução dos dados que vimos anteriormente. Outro motivo é que cada equipe produziu imagens levemente diferentes, e foi demorado chegar a um acordo sobre dos detalhes da imagem final.
Foram utilizados diferentes tipos de back-end digitais para as observações telescópicas, incluindo o sistema DBE1 de primeira geração, o sistema DBBC (Digital Base Band Converter), desenvolvido na Europa, e o RDBE (Digital Backend) da ROACH. A equipe também desenvolveu o "DBDBE" ou "R2DBE", que trabalha numa taxa de 16 gigasamples por segundo. Essa maravilha tecnológica foi combinada com um gravador digital Mark6, a última geração do EHT VLBI Data Recorder.
Cada gravador Mark6 recebe dados digitais a uma taxa de 16 Gigabits/segundo do R2DBE e os distribui entre um total de 32 unidades de disco rígido, agrupadas em 4 módulos de 8 discos cada. O EHT está programado para registrar uma taxa agregada em cada site de 64 Gigabits/segundo, usando 4 unidades Mark6 em conjunto.
Alguns dos telescópios utilizados nem sequer são telescópios no sentido tradicional da palavra (lembre, estamos falando de ondas de rádio), mas um conjunto de antenas menores que abarcam centenas de metros, e estão conectadas eletronicamente em fases. O observatório ALMA, por exemplo, combina até 64 pratos de 12m de diâmetro cada um, abarcando uma área total de 7200 metros quadrados.
O buraco negro foi fotografado em abril de 2017, ou seja, pouco mais de dois anos atrás, mas os resultados só foram revelados esse ano.
O nome do buraco negro é Powehi. Foi nomeado por Larry Kimura, professor de línguas havaianas na Universidade do Havaí (dois dos oito telescópios que foram usados para capturar a fotografia mais importante de 2019 estão localizados no Havaí). A palavra faz parte do Kumulipo, um canto havaiano do século 18, e representa uma "fonte obscura embelezada de criação sem fim".
Implicações da tecnologia do Event Horizon Telescope no futuro
Atualmente, embora vivamos no tempo da história em que mais dados são compartilhados, a astronomia não é o único campo que enfrenta desafios para converter e completá-los.
A medicina, a robótica, a informática e a inteligência artificial, só por mencionar alguns, também têm seus desafios na hora de processar uma quantidade de dados que cresce o tempo inteiro - e o algoritmo da foto que fez história pode ajudar enormemente.
Imagine utilizar essa tecnologia para completar imagens de doenças ou tecidos vivos, ou para desenvolver tecnologia para locomoção autônoma, que pode ajudar não só no transporte público, como também as pessoas com deficiência.
Outro ponto interessante é que, para captar e processar a absurda quantidade de informação em forma de radiação de diferentes frequências, os sistemas eletrônicos e de gravação precisam operar em velocidades incríveis – e, é claro, em um futuro próximo, será possível usar essa velocidade para nosso próprio conforto, divertimento, segurança e muito mais.
Um dos desafios atuais, com o advento da tecnologia 8K, já presente no Brasil, é uma maior velocidade de processamento para converter as imagens e melhorar sua qualidade, como também um aumento astronômico (justamente) da velocidade das redes. Mas depois da foto do buraco negro da Galáxia M87, isso não parece tão distante.
Vale a pena mencionar Gordon Moore, cofundador da Intel, que em 1965, com sua famosa Lei de Moore, previu que a capacidade de processamento dos computadores ia crescer exponencialmente a cada ano. Hoje a ciência prova que ele estava certo.
E então, ficou com alguma dúvida sobre a fotografia do momento? Use os comentários e até a próxima.
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